Transferência de tecnologias em saúde une universidade e mercado

SBEB destaca o papel estratégico da engenharia biomédica na conversão de pesquisas acadêmicas em soluções aplicadas para o setor de saúde

Transformar conhecimento científico em soluções concretas para o setor de saúde é um dos grandes desafios e oportunidades da engenharia biomédica no Brasil. A transferência de tecnologias da academia para a indústria tem ganhado espaço no debate entre pesquisadores, empresas e instituições públicas, ao evidenciar o potencial da ciência aplicada para melhorar o cuidado, dinamizar a inovação e fortalecer o ecossistema produtivo. Nesse cenário, a Sociedade Brasileira de Engenharia Biomédica (SBEB) tem ampliado sua atuação para incentivar a translacionalidade entre universidade e mercado, valorizando experiências que saem do laboratório e chegam à sociedade.

Um exemplo concreto desse processo é o RehaBEElitation, jogo sério voltado à reabilitação de pacientes com doença de Parkinson, desenvolvido por um grupo de estudos da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em parceria com a Université de Lorraine, na França. A proposta foi criar uma ferramenta lúdica, validada e centrada no paciente.

“O processo de transferência tecnológica nunca é simples, porque há, sim, um descompasso entre a realidade que a gente tem na universidade e a realidade do setor produtivo”, explica Adriano de Oliveira Andrade, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Biomédica da UFU. “A gente conhece muito bem o público, nós conhecemos os familiares, os profissionais da saúde, e estamos sempre em muito contato com esse pessoal. Isso tudo faz com que a gente compreenda essa realidade. Então, entender a realidade foi um grande diferencial para nós.”

A engenheira biomédica e pesquisadora da UFU, Camille Marques Alves,  detalha que a ideia do jogo surgiu da necessidade de tornar o tratamento mais motivador. “Elaboramos um questionário detalhado, distribuído a pacientes, cuidadores e profissionais de saúde, com o objetivo de mapear os principais desafios enfrentados no tratamento da doença. Esse processo foi fundamental para definir as funcionalidades do jogo.”

O RehaBEElitation foi estruturado a partir de dois doutorados em cotutela, de Camille e Luanne Cardoso Mendes, e da pós-doutoranda Isabela Alves Marques. No jogo, os pacientes controlam uma abelha em ambiente 3D e precisam realizar movimentos fisioterapêuticos como abrir e fechar as mãos, flexão e extensão dos braços, adução e abdução dos ombros, e a pinça com os dedos polegar e indicador, essenciais para reabilitação e neuroplasticidade.

“O fato de a gente querer desenvolver uma tecnologia de ponta, de termos diversos atores influenciando o resultado da pesquisa sob diferentes visões, foi fundamental para desenvolver uma tecnologia com qualidade que pudesse ser aplicada na prática”, afirma Andrade. Segundo o professor, foi principalmente por meio da divulgação da tecnologia que receberam atenção de várias empresas e de vários atores que reconheceram o valor do jogo desenvolvido.

O projeto recebeu reconhecimento internacional, com prêmios como o Challenge Handicap & Technologie e o Prêmio Boston Scientific. A empresa Neurowork formalizou a transferência de tecnologia, e o jogo passou a ser utilizado em países como Cuba, Espanha e França.

Realidade institucional e entraves da inovação

A experiência bem-sucedida da UFU também trouxe aprendizados sobre os limites institucionais. “A ausência de técnicos especializados dentro das instituições dificulta muito o processo de consolidação e de padronização do conhecimento que é fundamental para a transferência da tecnologia para o setor produtivo”, avalia Andrade. Ele destaca que na maioria das vezes os estudantes de pós-graduação são a força principal desses projetos.

O pesquisador aponta ainda que muitas empresas, principalmente as de menor porte, esperam soluções prontas da universidade, o que gera um desencontro de expectativas. Segundo o professor, na universidade não se encontra o produto pronto para comercialização, ou para fabricação, e sim o conhecimento da tecnologia que ainda precisa ser aprimorado para chegar ao mercado.

Outro exemplo de solução nascida da universidade é o sistema GETS – Gestão de Tecnologia para a Saúde, desenvolvido no grupo do professor titular da Unicamp e pesquisador do Centro de Engenharia Biomédica, José Wilson Magalhães Bassani. O sistema permite que instituições públicas façam o acompanhamento técnico dos equipamentos hospitalares.

“A função da universidade é produzir conhecimento a partir do desenvolvimento científico. Além disso, é importante que a universidade conheça os problemas reais do país dentro das diversas áreas”, diz Bassani. “Foi assim que, nos anos 2000, identificamos que o país não sabia a real condução funcional dos equipamentos instalados na rede pública. Daí saiu a nossa solução GETS, que ajuda a resolver este problema.”

O projeto foi apoiado pelo Ministério da Saúde, Ministério da Ciência e Tecnologia, pela universidade e por agências como a Inova Unicamp, mas sem atuação direta do SUS. “Os nossos parceiros são as instituições públicas de saúde que recebem licença de uso do nosso software GETS sem custo”, explica. “Temos também uma parceria com a Ebserh que envolve modificações no sistema e adaptações que são importantes para a empresa, mas que também são integralmente entregues para o setor público.”

Bassani reforça que, embora não haja parceria direta com o SUS, o potencial de impacto é claro: “O atendimento à saúde não se faz com equipamento ‘doente’. O nosso projeto se preocupa com a saúde dos equipamentos. É preciso saber como os equipamentos estão, onde estão, e se estão sendo bem tratados. Esse é o nosso foco.”

Uma ponte construída com ciência aplicada

As experiências de ambas universidades representam diferentes formas de colocar a ciência em prática — seja por meio de um jogo inovador voltado ao paciente, seja pela estruturação de sistemas que melhoram a gestão dos equipamentos para saúde. Para Andrade, essas trajetórias devem se tornar mais comuns. “A continuidade de ações como essa vai ter um impacto muito positivo e duradouro no futuro, que será aquele de consolidar, de fazer com que o exemplo do RehaBEElitation e outros inúmeros que a gente deve ter escondido nas nossas inúmeras instituições no Brasil apareçam cada vez mais, e que eles não sejam exceção, que passem a ser uma realidade e parte do nosso cotidiano.”

“A SBEB está fazendo um trabalho fantástico. Esse trabalho de aproximação entre a sociedade, o setor produtivo, é algo que já vinha sendo cobrado pelos membros da sociedade há muito tempo”, afirma Andrade. “Isso nos coloca em proximidade com pessoas importantes na área e, o mais relevante, faz com que a SBEB seja percebida por diferentes segmentos da sociedade.”

Um exemplo desse movimento será o painel Transferência de tecnologias da academia para a indústria: transformando pesquisa em Royalties, durante a Feira Hospitalar 2025, que reunirá pesquisadores para compartilhar suas experiências. “A Hospitalar abre espaço para o debate e transferência da informação, em todos os níveis da sociedade. É importante trazer o que há de conhecimento, soluções e os diversos setores envolvidos para apreciação das ideias e criação de novas perspectivas de projetos”, conclui Bassani.

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